Coluna do Portuga


UM  VELHO  MEIO  TEIMOSO  NA  MEIA

A maratona (42,195 km) e a meia maratona (21,0975 km) do Rio de
Janeiro, realizadas na data acima mencionada, não podiam ter
acontecido numa época mais feliz: uma semana após essa linda cidade
ter sido declarada pela UNESCO como a primeira a ganhar o título de
Patrimônio Cultural da Humanidade.

Mesmo quem nunca esteve na cidade já viu as diversas imagens que a
tornaram tão famosa: a Praia de Copacabana, o Morro Pão de Açúcar, a
Floresta da Tijuca, o Aterro do Flamengo, enfim, lugares que  são
componentes de um conjunto esculpido ( a maior parte ) pela mão de
Deus, artista mais do que perfeito.

O percurso da maratona do Rio de Janeiro cobre  o seu litoral famoso,
desde o Recreio até o citado Aterro do Flamengo. A meia maratona, como
o nome diz, compreende metade de tal trajeto, desde o “Pepê”, na Barra
da Tijuca, até o Aterro, ponto final de ambas.

Este ano resolvi correr uma meia maratona e escolhi justamente essa,
pelo visual de tirar o fôlego. Ou melhor, de tirar o fôlego não,
porque precisaria dele na ocasião. Mas pelo visual que acrescentaria
mais motivação à minha vontade de competir.
Meu sonho era corrê-la num dia de sol ameno e resplandecente, como são
os dias de outono e do início de inverno nessa cidade paradisíaca.

Para meu azar, uma semana antes da corrida peguei uma gripe que atacou
a minha sinusite crônica, deixando-me congestionado, afônico e com
alguma dificuldade em respirar. Tudo de ruim, não é? Bem, mais ou
menos! A voz afônica me permitiu não ter de argumentar
desvantajosamente em diversas discussões estéreis com a patroa. Em
muitas delas limitei-me  a  enigmáticos “dar de ombros”. Qual homem
não sonha agir dessa forma, sem represálias?

No sábado, os meus familiares acharam que eu não iria correr devido ao
meu estado gripal e, principalmente, em face  das chuvas que se
anunciavam para domingo. Na verdade, a parte sensata da minha mente me
dizia a mesma coisa. Porém, ela ficou calada quando eu me levantei às
quatro horas da manhã e comecei a vestir o uniforme, só se
manifestando quando botei os pés fora de casa e notou a chuva
encorpada. Era tarde, no entanto. A decisão já estava tomada.

Dirigi-me ao local de largada na expectativa de que o tempo ruim logo
desaparecesse, como ocorreu há alguns anos com um amigo meu, nessa
mesma corrida. Contudo, já devia ter aprendido que a história não se
repete, principalmente quando ela nos pode ser favorável : a chuva nos
castigou durante 80 % do trajeto. Nos restantes 20% só não aconteceu o
mesmo  em virtude da proteção oferecida pelos túneis e elevados
existentes ao longo do percurso.

Na virada de Ipanema (Arpoador) para entrar em Copacabana, na Rua
Francisco Otaviano, o aguaceiro e o vento gelado batiam nas costas dos
corredores. Lembrei-me daquele ditado que diz - “Existem duas coisas
que matam de repente: vento pelas costas e marido traído, invocado e
valente, pela frente.”
Aliás, o vento era tão forte que empurrava os copinhos de água
largados no chão, fazendo-os correr numa velocidade superior à dos
atletas.

Ao longo da Avenida Atlântica, em Copacabana, a organização da corrida
colocou diversos palanques cobertos, repletos de pessoas contratadas
para animar, com palmas e gritos de apoio, os corredores que passariam
já bastante cansados. Tentei negociar com alguns deles a troca de
lugar. Em vão.

Cheguei ao final da corrida. Dolorido e encharcado. A minha pele
estava toda enrugada por tanta água absorvida. Imaginei ser necessária
uma abstinência de banhos por alguns dias para que ela se
recompusesse.

Peguei a medalha de conclusão da prova. Sentia-me um herói, ora bolas.
Não importa o meu tempo total de corrida. Só sei que cheguei vinte
minutos antes do queniano vencedor da maratona. O fato da distância da
sua prova ter sido o dobro da minha e de ele ter largado uma hora
depois eram meros detalhes insignificantes. Pelo menos para mim.

Preocupado com minhas condições físicas, mas satisfeito pelo meu
feito, fui embora para casa lembrando que antes devia passar no
supermercado e comprar duas lasanhas para o almoço, dessas que já vêm
prontas dos frigoríficos. Acho que faria uma média e tanto com a
família por tê-la deixado por algumas horas, num domingo de lazer a
ser vivido em conjunto.

Entrei no ônibus, aparentemente demonstrando um estado deplorável,
pois alguns passageiros me lançaram olhares de comiseração. Sentei-me.
Em seguida comecei a sentir calafrios. Logo após vieram a tosse e um
pinga-pinga no nariz intermináveis. Apavorado, pensando nas possíveis
consequencias danosas ao meu organismo por causa da minha
irresponsabilidade, murmurei no meu francês fajuto de poliglota
frustrado, como sempre acontece quando fico aflito:

- “Phou Deuce !”


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FÔLEGO PARA UM CORREDOR
  
Em diversas ocasiões já comentei sobre a minha incapacidade de melhorar os meus resultados nas corridas de rua de que participo, embora seja disciplinado nos treinamentos regulares. Qualquer tentativa para baixar minutos no meu tempo final resulta numa tarefa árdua e extremamente cansativa.

Em conversas com outros corredores mais experientes, todos foram unânimes: era um problema de respiração. A partir do momento em que passasse a respirar  de forma coordenada e com ritmo, eu iria possuir mais fôlego e sentir-me-ia menos cansado.

-Perfeitamente! Tudo entendido - pensei eu. Bastava somente entrar no site de buscas e procurar no tópico “corridas-respiração”.

Foi fácil. Li mais de vinte artigos sobre o assunto e todos batiam na mesma tecla: - “Procure respirar no ritmo de suas passadas, inspirando pelo nariz e expirando pela boca”.

-Moleza, eu pensei! Afinal, durante meu aprendizado de natação esse era meu mantra constante, exemplarmente executado, notadamente quando me conscientizei que deveria inspirar fora da água e expirar dentro dela, e não ao inverso, como fazia no início do curso.

As dicas do site eram seguidas da mesma explicação: além da renovação do ar se processar de maneira completa por se usar vias distintas, o fato é que, ao se inspirar pelo nariz, os pelos internos das narinas protegem o organismo através da filtragem do ar poluído, bem como adaptam a temperatura ambiente à do corpo, tornando-se ainda mais importantes pelo fato das respirações em corridas serem mais sugadoras do ar do que em situações de pouco esforço.

Essa condição me era extraordinariamente adequada: primeiro, devido a  nunca ter tido vícios que pudessem danificar os meus dutos respiratórios; segundo, pelo fato do crescimento dos pelos ser uma das características dos idosos: - Puxa, como crescem os pelos dentro do nariz e dos ouvidos dos homens de idade! Aliás, qualquer idoso, se olharmos tão somente pelo ângulo da abundância capilar, exceto onde realmente faz falta, poderia concorrer com as celebridades femininas que posavam nuas para as revistas masculinas em épocas remotas. Com boas chances de suplantá-las. Se fosse concorrer com as atuais celebridades, essa aposta seria, como diz a gíria do turfe, uma  barbada em favor dos idosos.

-Aqui, um adendo: por causa do crescimento acentuado desses pelos, eu tive que aumentar a gorjeta concedida ao meu barbeiro de fé, sob pena dele me deixar meio homem, meio lobisomem. E a merreca da aposentadoria não cobre esse gasto extra, refletindo-se em mais uma injustiça contra as pessoas da terceira idade. Está na hora de algum legislador cuidar da criação de um “vale-depilação” para o idoso.

Bem, nos treinos que se seguiram, comecei a por em prática o exercício respiratório recomendado: cabeça erguida como se estivesse olhando a linha do horizonte, inspirando quando o pé direito estivesse à frente, e expirando na vez do pé esquerdo. Assim, ereto, respiração compassada, vinha-me uma sensação engraçada: sentia-me solene, como aquele aristocrata da piada, dentro de um elevador lotado, mantendo o jeito impávido e empedernido num momento em que, se fosse outro, sorriria com um ar marotamente culpado.

Porém, o treinamento adiantou muito pouco. Consegui tão somente reduzir entre dez e vinte segundos o tempo de cada quilômetro percorrido. E quando tentei acelerar mais um pouco, perdi completamente o fôlego.

Voltei ao site, que sempre explica tudo. Diziam vários comentaristas: -  “ Em situação de extrema intensidade, inspire (e expire também, se não explodirá) por todos os buracos possíveis, você não pode é deixar seus pulmões com carência de ar. Porém, tente manter a coordenação com o ritmo de suas passadas. É muito importante essa sintonia.”

-Aí sim, ficou mais fácil. Valeria tudo!

Bem, devo confessar que nos primeiros treinos era-me difícil manter o equilíbrio, por causa da sintonia necessária: ora eu tinha a sensação de que iria tropeçar nas próprias pernas, ora de que iria ser atropelado pelo meu nasal, que eu o sentia atuando  como se fosse o focinho de um tamanduá aspirando um formigueiro. O fato é que, atualmente, sinto-me em condições melhores ao terminar um pique de duzentos, trezentos metros. Mas ainda não consegui projetar esse benefício para longas distâncias e tenho dúvidas se conseguirei.

Pelo andar da carruagem (bem lento, diga-se de passagem), penso que somente serei capaz de desafiar os vovôs quenianos para um jogo de palitinhos. Isto é, se tal esporte não for também praticado por aquelas bandas, é bom que se ressalte.




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AFLIÇÕES  DE  UM  ATLETA
Embora já na “melhor idade”, sou um corredor iniciante, faz pouco mais de um ano que adquiri esse hábito, participando de competições, sempre que possível. Entretanto, verifiquei que atingi um limite do qual não saio: o de percorrer cada quilômetro em cerca de sete minutos, o que me deixa sempre nos últimos postos, somente superando os estreantes sedentários e as mulheres grávidas (de gêmeos). Qualquer tentativa para melhorar o tempo me deixa extremamente cansado.

Essa minha limitação ficou flagrante numa corrida de rua da qual participei, numa cidade pequena.

Acostumado a eventos de grande porte, com milhares de inscritos, nos quais essa minha limitação física sempre passou despercebida, estava  ciente de que iria ficar um pouco mais exposto aos olhares dos expectadores, pois, com certeza, haveria um número reduzido de componentes. Porém, não o esperava tão diminuto: eram  dezessete inscritos, eu incluído, e todos os outros dezesseis lembravam atletas quenianos, pois não possuíam qualquer vestígio de gordura, o que para mim significava, “corredores experientes e de alto nível”.

Abrindo (e depois fechando) parêntesis: nos grandes eventos, a pessoa recebe um chip eletrônico que marca seu tempo de corrida, desde a sua passagem pelo pórtico, na saída, até a sua passagem na chegada. A largada sempre ocorre mediante um tiro de festim, ou uma sirene, com a turma da elite saindo na frente, precedida por batedores montados em chamativas motos ( havendo também batedores  atrás do último competidor).

Naquele evento da pequena cidade, não havia chip, não havia pórtico, não havia pistola, não havia motos. Uma Kombi velha iria puxar a corrida, transportando toda a coordenação do evento, que incluía, depois eu soube, um farmacêutico para prestar os primeiros socorros, caso fossem necessários.
Um homem da organização postou-se no meio da rua e anunciou:
- Aí, meus campeões, tomem seus lugares! - Não fiquem preocupados consultando  seus relógios, haverá alguém da coordenação computando o tempo de cada um, lá na chegada. Dito isso, levantou o braço e avisou: - A largada será quando eu abaixar o meu braço.

Não pude deixar de rir, imaginei a cena transportada para uma corrida de milhares de participantes: ele seria atropelado antes que pudesse arriar completamente o braço e antes de se proteger como fazem os jogadores de futebol ao formarem uma barreira. Na certa ele seria pisoteado, ficaria igual a um tapete, como se vê em desenhos animados. E se isso acontecesse, seria de bom alvitre que ele já tivesse todos os filhos pretendidos.

Bem, voltando à corrida da cidade pequena; no instante da largada, procurei distinguir a elite e me aterrorizei: tal pelotão era composto por todos os outros dezesseis participantes,  alinhados, lado a lado. Reconhecendo a minha mediocridade, permaneci humilde na fileira de trás e foi aí que percebi, na minha retaguarda, um batedor montado numa bicicleta, fazendo-me um sinal de positivo.

Nem vi o juiz de largada abaixar o braço, só escutei o aviso do ciclista atrás de mim, gritando:
 - Vai!

Fui.

Após ter dado os seis primeiros passos, olhei para frente e notei os demais, já uns trinta metros distantes, fazendo uma curva para entrar numa rua transversal. Foi a última vez que os vi durante a corrida.

Corri o mais depressa que pude. Minhas bochechas tremiam no embalo das minhas passadas, meu coração dava pinotes querendo acelerar a carcaça, porém os pulmões não obedeciam, numa completa falta de sintonia entre esses órgãos. Na passagem por um dos pontos de ônibus ao longo do caminho, ouvi a primeira gozação:
- O coroa não vai aguentar!

Preocupado comigo, e talvez com os seus compromissos pós-corrida, o ciclista  encostou ao meu lado e , pra minha suprema humilhação, deu-me um conselho que ele entendeu necessário:
- Aí, gente boa, não precisa fazer todas as curvas! Corta caminho, ninguém está olhando!
Qual é? Tenho dignidade, não sou trapaceiro! Ademais, também não adiantaria eu tentar enganar a mim mesmo, já que me considero bem esperto e esse engodo só vingaria se  eu me pegasse distraído. Por isso, ignorei sua sugestão.

Mais adiante, ao passar por um bar, soltaram outra gracinha:
- Vovô, para com isso, vem tomar um refrigerante!

Nesse exato momento lembrei-me de não ter visto postos de hidratação ao longo do percurso, como habitual nas corridas sofisticadas. Creio que se eu tivesse parado no bar, poderia tomar uma água e pendurar a conta para a organização quitá-la, contudo a corrida era curta, de cinco quilômetros, dava para encará-la a seco.

Finalmente terminei a prova, nem lembro qual foi o meu tempo, sei que estava exausto. Como é praxe em todas as corridas, o batedor da retaguarda fez barulho anunciando a chegada do último competidor. Nunca mais esqueci do som estridente da campainha daquela bicicleta.

Acredito que os outros participantes já estivessem no local de chegada pra mais de vinte minutos, suas camisetas estavam quase secas e já tinham acendido o carvão. É, ia haver um churrasco em comemoração, do qual, obviamente, nem cogitei partilhar, sentindo-me inferiorizado.

O coordenador a mim se dirigiu e entregou a medalha habitual de participação. Não me choquei ao receber uma medalha tipo “padrão”, contendo a gravação “honra ao mérito” ao invés de uma contendo o registro do evento. No entanto, quase me irritei quando o camarada perguntou:
-Quer mais uma? Está sobrando!

Vendo-me acabrunhado e sentindo que o motivo teria sido o meu fraco desempenho, o coordenador acrescentou:
- Meu jovem (outra zombaria), não fique desolado. O importante é competir!

Sei da força dessa frase, reconheço o quanto ela é verdadeira em termos esportivos, eu mesmo já a usei para consolo próprio, em outras ocasiões. Mas, naquela corrida ela não me soou como um alento, pelo contrário, parecia carregada de ironia, fazendo-me recordar, quase como analogia, de um comentário do Cláudio Manoel, grande humorista da famosa turma televisiva “Casseta e Planeta”, o qual, discorrendo sobre a ascensão do  Vasco, da série “B” para a série “A” do campeonato brasileiro de futebol, disse:
- “Ganhar a segunda divisão é como ir receber um parente libertado da prisão: a gente fica feliz, mas dá uma vergonha danada!”.

Naquele momento jurei que só me inscreveria em eventos que reunissem milhares de pessoas. Ainda atordoado, saí para procurar um táxi, quando vi minha mulher, de carro, aguardando-me, com um sorriso que parecia debochado. Ela havia acompanhado a corrida, atrás do ciclista.
Cheguei a pensar em divórcio.  

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NÃO COMO MAIS MELANCIA
No último domingo, reunimos parte da família para um almoço, sem motivo especial, somente pelo prazer de trocar uma prosa com as pessoas que, apesar de uma ou outra rusga, um ou outro abandono pelo caminho, estão conosco do início ao fim de nossas vidas.
O almoço foi delicioso e o papo foi colocado em dia de maneira bem agradável. Um dos momentos de pura descontração ocorreu quando contei sobre a minha inscrição para uma próxima corrida de rua, no percurso de dez quilômetros, como meta de preparação para futuras – quem sabe? – maratonas internacionais.
Pois não é que o computador obtuso, ao receber o meu pedido de inscrição, devolveu-me a seguinte mensagem:?
“Pedido de Inscrição :  Aceito
Nome : Manoel Rodrigues
Sexo : Masculino ( com um “M” bem grande, como era de se prever).
Distância: 10 km
Data de nascimento: 03/10/1909”
Como é? Então eu já estava com cem anos?
Imediatamente soltei dois e-mails: um em resposta à confirmação do pedido, e o outro para o cadastro da empresa organizadora do evento, ambos solicitando a retificação da minha data de nascimento, afinal estou velho, mas não tanto, bote aí quase quarenta anos a menos.
Silêncio em resposta. No mesmo dia efetuei o pagamento da inscrição.
Dois dias depois recebi novo e-mail, em reconhecimento ao pagamento efetuado:
“Inscrição Confirmada
Etc, etc
Data de nascimento: 03/10/1909”
Bom, não preciso explicar que tornei-me o alvo de gozações dos familiares, com suas piadinhas infames sobre bengalas, mal de Parkinson, cadeira de rodas, e afins.
Contudo, um comentário me deixou preocupado: o de que, tendo em vista a combinação quase inusitada – total da distância e idade –, a minha inscrição teria uma divulgação e um impacto muito acentuados. E foram feitos, pelos meus familiares, os seguintes cálculos, talvez exagerados, mas, sem dúvida, preocupantes:
. “ Considerando que a minha participação seria digna de uma cobertura jornalística, as imprensas escritas, faladas e televisionadas, enviariam para lá equipes especiais, talvez uma frota de uns quinze carros, com cerca de sessenta profissionais do ramo”;
. “ Considerando a alta possibilidade de que ocorresse comigo um problema médico, a organização colocaria ambulâncias a cada duzentos metros, o que demandaria uns vinte e cinco veículos, já que o trajeto era de cinco quilômetros, a serem percorridos em ida e volta, exigindo também o comparecimento de cerca de cem profissionais da área, entre médicos, enfermeiros e motoristas”;
. “ Considerando o retorno publicitário que essa cobertura traria, seriam feitas inúmeras chamadas, convocando a população a assistir ao extraordinário feito de um ancião guerreiro, de um homem inconformado perante os efeitos danosos da passagem do tempo, de um exemplo para os sedentários e derrotados”. Assim, seriam necessários quase mil policiais para cuidar da ordem e da segurança dos expectadores.
. “ Considerando o prestígio que o evento traria à organizadora, talvez um prêmio especial fosse destinado a esse atleta idoso”.
Almoço terminado, os familiares foram embora, e dei-me ao luxo, então, de mergulhar na convidativa soneca pós-refeição.
Adormecido, comecei a sonhar com a situação: eu podia sentir quase quarenta mil pessoas correndo atrás de mim, aos gritos de falsário, embusteiro, pilantra, e soltando palavrões não publicáveis, depois de saberem que o número da inscrição não correspondia a um homem centenário; distinguia vários policiais, ansiosos em me prender, tentando acompanhar minha velocidade de atleta bem treinado; tudo isso, sem esquecer que advogados dos envolvidos no evento, queriam me processar, solicitando indenização pelos gastos efetuados.
No sonho, eu via ainda bigodões de fogo voando como borboletas, batendo suas asas na irrevogável perseguição a que fui irrevogavelmente condenado; tinha visões sobre barbas eriçadas em meu encalço, grafitadas com as siglas CPMF e CSS nas laterais e com o termo PRÉ-SAL no queixo; notava, amedrontado, um homem arroxeado, de olhar faiscante e semblante transtornado, apontando-me aos berros: -“Vou te pegar, seu falso marajá da letras”!
Sugestionado pela alcunha de “marajá”, eu me percebia alçando voo num tapete mágico, procurando, desesperadamente, o caminho para as Índias, de forma a encontrar refúgio no colo salvador e suave de alguma indiana encantada.
Acordei sacudido pela patroa, com seu rosto próximo ao meu, dizendo:
- Beeeeemmm, você vai ficar dormindo a tarde toda? Não tem coisa melhor pra fazer? Vamos ao Shopping comprar uns sapatos para mim!
Abri um olho, mantendo o outro pensativo. Em seguida, saltei lépido da cama, satisfeito com a sua sugestão. E jurando nunca mais comer tanta melancia antes de dormir.
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CORRIDA DA PONTE RIO-NITERÓI DE 2011




Nunca esquecerei essa corrida

Havia mais de vinte anos que essa prova não era realizada. Bastante desafiadora, realizada no sentido Niterói/Rio de Janeiro, com um trajeto de quase vinte e dois quilômetros,  sendo vinte deles por sobre a ponte e por sobre elevados de concreto, sem qualquer sombra,  sequer um arbusto no percurso.

A princípio achei que não seria tão difícil concluí-la pois vinha treinando duas a três vezes por semana, na média correndo sete a oito quilômetros em cada um desses dias. E, afinal, a prova seria no dia dezessete de abril, já bem dentro do outono, a estação dos dias claros, lindos e de temperatura amena.

No dia da corrida, uma surpresa desagradável: ele realmente estava límpido e bonito, só que o calor era similar ao de verão e não havia qualquer brisa para refrescá-lo. Embora a largada estivesse programada para as oito horas da manhã, sabia que eu levaria mais de duas horas e meia para completá-la e assim sofreria com o sol abrasador na sua parte final. Na concentração, enquanto esperava o sinal de largada , imaginava que essa prova tinha tudo para ser uma odisseia, uma epopeia e uma má ideia. 

Os metros iniciais antes da ponte foram tranquilos e uma verdadeira festa, com vários expectadores participativos incentivando os corredores. Ao entrar na ponte veio a emoção indescritível de nela pisar pela primeira vez  com os próprios pés, sem decorrer de uma parada por defeito em veículo.

Assim, após percorrer cinco quilômetros, cheguei à subida do temido vão central, que no seu ponto mais alto atinge setenta metros acima do nível do mar. Porém, foi menos desgastante do que pensava. Quando me dei conta, já imprimia um ritmo acelerado na sua descida.

Lá pela altura do décimo quilômetro vinha numa boa cadência, acreditando  que, até com um pé nas costas, cumpriria o tempo máximo de conclusão  previsto pelos  organizadores, de duas horas e quarenta e  cinco minutos.

Ledo engano. Os pés tinham que ficar no chão. Os dois. Assim sendo, comecei a sentir leves contraturas nas panturrilhas, nada, entretanto, que me apavorasse. Com determinação e muita garra  procurei manter o ritmo. Acostumado com as adversidades, parti pra luta. Cada metro que eu percorria sob o sol já escaldante e sobre o asfalto em brasa, produzia em mim uma sensação incrível : a de desânimo, por saber que ainda faltavam milhares de metros para concluir o percurso.

Lá pelo décimo quinto quilômetro as câimbras substituíram as contraturas.  Diminui o esforço, quase andei, esperando o próximo posto de hidratação que deveria estar abastecido com a bebida energética, conforme a programação divulgada. Certamente iria ter minhas forças restauradas depois de bebê-la.

Bateu o desespero ao chegar ao posto. Seja por falha da organização, seja por possível egoísmo de alguns corredores mais rápidos - por talvez pegarem mais de um energético cada - , o fato é que a bebida isotônica havia acabado. E somente haveria algo para beber – no caso apenas água - daí a três quilômetros, o que totalizaria , desde o último posto de hidratação, seis quilômetros sem ingerir qualquer líquido que amenizasse a sede, o calor e o cansaço. Nesses seis quilômetros pude ter uma noção do sofrimento, da angústia e da agonia que sente um homem no deserto com o seu cantil já seco, ou um fumante inveterado com seu maço de cigarros já vazio, ou uma mulher sem comprar uma peça de vestuário depois de decorrido um mês inteiro.

Aqueles últimos sete quilômetros foram  preocupantes. As câimbras não me permitiam um desempenho adequado e constante: ora eu corria e mancava; ora eu caminhava e mancava; ora eu mancava e mancava. O ônibus que deveria recolher os atletas muito lentos, cuja performance projetasse uma conclusão da prova além do limite estipulado, aproximava-se cada vez mais. Mas eu não iria ser liquidado facilmente.

Reuni as últimas forças, suguei minhas derradeiras energias e consegui terminar a prova (em mais de três horas, é verdade, mas ainda na frente de alguns corredores em pior estado, além daqueles que abandonaram a corrida e foram recolhidos).

Vencido o desafio, com a medalha já no peito, sentei pra descansar como se fosse um príncipe, como já dizia o grande Chico Buarque. Nesse momento o corpo esfriou e as câimbras vieram mais fortes. As panturrilhas sacolejavam feito uma elétrica passista de escola de samba. Elas chacoalhavam tanto que eu tinha a impressão que elas virariam um purê de batata da perna. Amigos e profissionais à minha volta tentavam de tudo que era possível para acabar com aquelas contrações, porém nem alongamento, nem massagens, nem um creme não sei de quê, arranjado não sei onde, produziram qualquer melhora. Pensei que um relaxamento poderia resolver e por isso incentivei minha mente a se concentrar nas coisas boas da vida, tais como sexo e a Nona Sinfonia de Beethoven, contudo não consegui realizar a conexão mental necessária.

Não houve jeito: para delírio das moçoilas ao meu redor, quatro bombeiros sarados me levaram, numa maca, para a tenda médica onde, diretamente na veia, tomei alguns frascos de soro glicosado e potássio, de modo a me reidratar adequadamente.

Após o atendimento, com as panturrilhas já voltando ao normal, prontas para exercerem suas funções (que nem sei quais são), fui embora para casa com uma certeza : na minha idade, atleta há bem pouco tempo, sem qualquer apoio técnico, sem trabalho muscular e sem aparelhagem e orientadores adequados, considero ter sido uma proeza terminar uma corrida cascuda como aquela. Por isso, eu me considero um sobrevivente, um guerreiro e um irresponsável.